
Como alguém que sempre se vê jogando videogames (você pode me considerar gamer), meu desgosto pelo "personagem do jogador" é muito conhecido e bem documentado. De Fire Emblem a Baldur's Gate 3, a ideia de jogar como uma ficha em branco não é atraente para mim, e, o principal motivo é que não é assim que eu quero vivenciar a história do jogo. Da perspectiva da narrativa e do design do jogo, enriquece a experiência ao termos um protagonista que pode ser o que o jogador quiser, mas, ao mesmo tempo, tira o interesse do resto do jogo, porque significa que a personalidade do personagem não terá influência significativa nos eventos principais da história. Gosto quando a história é fundamentada em uma certa perspectiva, porque permite que você perceba as coisas e se mova pelo mundo daquele jogo sendo alguém diferente do que você realmente é. E se as escolhas e as motivações do personagem forem diferentes das suas, é ainda melhor. Gosto quando o personagem que estou controlando faz algo que eu sei que é uma má ideia e não posso fazer nada para pará-lo, como um trem desgovernado saindo dos trilhos.
Mas entendo que nem sempre irei conseguir o que quero, porque a verdade é que as pessoas gostam de usar videogames para jogar como um avatar de si mesmas, e não posso dizer que isso é ruim. Na verdade, aposto que a maioria das pessoas gosta de jogar como um personagem que é um substituto de si mesmo ou um personagem original de sua própria invenção. Consigo entender o apelo. Por que você não gostaria de se ver como um ranger élfico, ou um fazendeiro em uma cidade idílica? E, nesse caso, por que você não gostaria que seu avatar fosse igual a você na vida real?
A abordagem de construir um protagonista é popular quando falamos de RPGs - mas também tem seus pontos negativos, principalmente quando se trata de romances de identidade queer. (Sim, esse artigo é mais do que eu apenas reclamando). A sexualidade em videogames é algo que já evoluiu muito nas últimas duas décadas. Houve um tempo, não muito tempo atrás, em que os romances gays não eram sequer considerados pelos desenvolvedores de jogos. Existem muitos motivos para isso, incluindo estigmas sociais em torno de tudo o que é queer, mas na minha perspectiva, é uma combinação entre jogadores que buscam uma fantasia de poder, e entre o fato de que a maioria desses "gamers" eram equiparados a "homens heterossexuais e cisgêneros".
Quando joguei a trilogia Mass Effect da BioWare pela primeira vez há alguns anos, senti que não era um jogo para mim. Rapidamente tive a sensação de que as personagens femininas eram todas feitas para namorar os personagens masculinos, enquanto os personagens masculinos jogáveis eram apenas personagens. Isso significa que as mulheres sentiam que suas personagens eram rasas e arquetípicas, enquanto os homens se sentiam realizados e recebiam personagens mais profundos (ironicamente, isso torna os homens muito mais atraentes para o romance).
Naquela época, havia uma liberdade para moldar seu personagem e a sua história, mas essa liberdade ainda acontecia dentro de um certo limite. Os videogames carregam informações da época em que foram criados, pelas perspectivas dos desenvolvedores e pelos desejos dos jogadores. Quando o primeiro Mass Effect estava sendo desenvolvido nos anos 2000, as vozes que pediam romances queer provavelmente não eram tão altas quanto seriam agora. De acordo com um estudo feito pela International Game Developers Association em 2004, os homens representavam 92,9% dos 994 entrevistados. É seguro dizer que a maioria dos homens que desenvolveram Mass Effect também eram cis e heterossexuais, então eles estavam criando jogos de uma perspectiva um tanto quanto limitada. Para seu crédito parcial, o primeiro jogo tinha uma companheira que era romântica tanto pelo protagonista masculino quanto pelo feminino — mas demorou até o terceiro jogo da franquia (lançado em 2012) para os escritores de Mass Effect perceberem que os homens gays também estavam jogando seu jogo.
"A minha ficha caiu com o Mass Effect original", disse Kenneth Shepard, escritor da equipe da Kotaku que também é criadora do Normandy FM, um podcast sobre videogames. “Como um garoto gay de 15 anos, você meio que vê a falta de opções de romance equitativas — esse jogo tinha três opções de romance, e nenhuma delas era para homens gays — e você começa a perceber que certas pessoas não são priorizadas. Quando entendi o que estava acontecendo, comecei a notar que isso se repetia em praticamente todo jogo com romance.”
As coisas mudaram muito desde então. Hoje em dia, os romances queer são comuns em muitos RPGs — isso porque esses jogos agora usam um modelo no qual você pode namorar NPCs independentemente do seu gênero. Baldur's Gate 3 virou notícia pelo fato de que você pode ter um momento íntimo com um urso (não aquele urso — é literalmente um urso), mas todos os seus personagens serem interesses românticos faz apenas parte dos negócios, como de costume. Já faz tempo que as pessoas não se surpreendem com jogos que permitem romances queer, já que os desenvolvedores perceberam que é mais inclusivo e mais eficiente disponibilizar todos os romances, independentemente do gênero.
De certa forma, a nova tendência é uma vitória para os jogadores queer. Mas à medida que avançamos em direção a um mundo no qual todas as opções de romance estão disponíveis para todos os personagens jogáveis, inevitavelmente sigo com as mesmas queixas que sempre tive com um jogo construído em torno de um protagonista em branco. Assim como não acho gratificante interpretar um personagem sem uma perspectiva definida, também acho sem apelo que as sexualidades e preferências das opções de romance sejam simplificadas para "o que o jogador quiser".
Um termo popular para este fenômeno é “playersexual" ("jogador sexual"). "Para mim, o termo resume o que há de errado com esse novo fenômeno — sabemos que as opções de romance podem ter sexualidades abertas, mas nenhuma dessas sexualidades tem intencionalidade. Seria diferente se todo o elenco de Baldur's Gate 3 fosse bissexual, e que essas características queer fossem informadas nas interações dos personagens com você, uns com os outros e com o mundo, mas em vez disso todos eles parecem estar abertos a falar sobre isso para você em particular, quem quer que seja o personagem. Você poderia até argumentar que, em um mundo de fantasia, talvez o conceito de preferências de gênero simplesmente não exista, mas isso não é verdade quando falamos da maneira como as pessoas são e parece até uma desculpa. Além disso, se você quiser que a sua personagem seja gay, lésbica ou mesmo — por algum motivo — heterossexual, o que isso significa para você?
Um exemplo notável de personagens românticos que definiram suas sexualidades está em Dragon Age: Inquisition da BioWare, um jogo em que o elenco de companheiros incluía Sera, uma lésbica, e Dorian, um homem gay. Naturalmente, Sera só era romântica com avatares femininos, e Dorian só era romântico com avatares masculinos. Isso enriqueceu muito os dois personagens e permitiu que eles parecessem muito mais completos, particularmente no caso do Dorian, cuja história inteira é baseada em sua sexualidade, causando conflitos entre ele e sua família.
"Não gostamos de como [playersexual] fez com que os personagens se sentissem como se existissem a serviço do jogador; como se estivessem lá no jogo para ser um brinquedo", disse o escritor principal de Dragon Age, David Gaider, em entrevista para a Kotaku. “Sentimos que não era para isso que esses personagens foram criados. Não era esse tipo de jogo que estávamos fazendo. Eles, em primeiro lugar, eram personagens, e eles tinham suas próprias histórias, e o jogador podia interagir com eles, mas nem sempre era sobre o jogador.”
Dorian era único como uma opção de romance masculino gay porque os homens gays são muitas vezes os jogadores com menos opções quando se trata de romance. As opções de romance feminino geralmente são mais variadas para personagens jogáveis femininas, embora personagens exclusivamente lésbicas também sejam comparativamente raras. Como alguém que sempre joga como uma Qunari feminina em Dragon Age: Inquisition, gostei mais do arco do Dorian por causa de sua especificidade, e não poder interagir romanticamente com ele não diminuiu isso. Mas vários jogadores se ofenderam com o fato de que esses dois personagens não estavam disponíveis para eles, o que é algo que os designers de jogos levam em consideração ao esboçar opções de romance. Vale a pena remover a especificidade e a riqueza que vem de escrever um personagem com uma sexualidade definida — sexualidade essa que exclui metade da base de jogadores — apenas para que não pareça que alguém ficou de fora?
Como provavelmente deixei claro ao longo desse artigo, minha resposta a essa pergunta seria “não." Não acredito que escrever personagens mais profundos não altere nada, incluindo a satisfação do jogador. Mas, definitivamente, existem desvantagens nessa abordagem. Por um lado, dificulta as coisas para os desenvolvedores, que precisam incluir mais opções para garantir que todos tenham algo. Mas, por outro lado, não há garantia de que todos os dados demográficos serão atendidos igualmente. Isso não aconteceu no passado.
"Muitas pessoas optam por jogos baseados em escolhas por apresentarem a ilusão de escolha, ou a escolha realmente não importa no final", disse Tony Howard-Arias, cofundador da Black Tabby Games, em entrevista para a Kotaku. “O fato é que toda vez que você toma uma decisão importante na narrativa, duplica o seu trabalho a partir desse ponto, se quiser respeitar essa sua decisão.”
"O mais lamentável é que prefiro a abordagem de Dragon Age: Inquisition de dar aos personagens um grande espectro de identidades", disse Kenneth. "Mas quando os homens gays são os que sempre são deixados de lado, eu prefiro jogos em que todos os personagens são pansexuais e isso é bem retratado e pensado, do que jogos em que um leque mais amplo de sexualidades definidas significa que os homens gays recebem apenas migalhas.”
Não há uma solução única para o problema da "playersexuality". "E quando confrontados com o tipo de trabalho extra que vem com a criação de um elenco de personagens que tem sexualidades definidas, não há garantia de que os desenvolvedores não decidam priorizar certos públicos em detrimento de outros. Mas acho que é possível criar um jogo em que os jogadores se sintam suficientemente "servidos" e os personagens pareçam autênticos. Kenneth observou que Baldur's Gate 3 fez um bom trabalho ao fazer com que seus personagens falassem e fossem afetados por relacionamentos passados com pessoas que não são você e são de gêneros variados. Mass Effect e Dragon Age também apresentam companheiros que podem acabar em um romance um com o outro se você não estiver namorando nenhum deles, o que significa que eles não sentem que estavam apenas parados e esperando que você dê algum propósito à eles (mesmo que, sim, quando você os conhece, eles geralmente estão apenas parados e esperando que isso aconteça).
A chave está na intencionalidade. Claro, todos os personagens românticos em um jogo podem ser bissexuais — isso é bom e bastante verdadeiro para a vida real (você não pode imaginar quantos bissexuais eu conheço). O que importa é que suas sexualidades são definidas de alguma forma e expressas como uma das partes centrais de suas identidades, o que mostra a maneira como elas se envolvem com o mundo. É assim que funciona para nós, como pessoas reais. E se quisermos que nossos romances de videogame sejam gratificantes e não apenas empoderadores, eles precisam parecer enraizados de verdade.